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Ainda não perdemos o senso de Justiça

Ainda não perdemos o senso de Justiça

22/10/2021 às 11h26 Atualizada em 22/10/2021 às 14h26
Por: Redação
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Na semana em que a CPI da Covid roubou os holofotes – primeiro recomendando denúncia contra Bolsonaro por homicídio qualificado, e depois voltando atrás – parece um contrassenso falar sobre justiça. 

Como sabemos, o jornalismo se concentra em apontar os problemas, as falhas, as críticas possíveis sobre o que se passa passa na sociedade. No jornalismo investigativo, ainda mais; na redação da Pública costumamos brincar que nosso site é daqueles que deixa a pessoa inescapavelmente deprimida.

Mas a vida não é feita apenas de más notícias. Na semana passada, depois de mias de 14 horas de audiência, na madrugada de quarta para quinta-feira, a juíza Mariana Aquino, da Justiça Militar da União, emitiu uma sentença corajosa e histórica, condenando os militares que mataram dois pais de família, o músico Evaldo Rosa e o catador de recicláveis Luciano Macedo, a penas que vão de 28 a 31 anos de prisão pelo crime que ficou conhecido como “o caso dos 80 tiros”. Tiros de fuzil, contra um carro de família em pleno domingo de sol.

A decisão não tem precedentes, seja na ditadura, seja na democracia, até onde eu consegui apurar. Como lembra Rubens Valente, em novembro de 1988, semanas depois da promulgação da Constituição, tropas do Exército chacinaram três operários grevistas da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda, também no Rio de Janeiro, também com tiros de fuzil. Seus nomes eram William Fernandes Leite, Walmir Freitas Monteiro e Carlos Augusto Barroso, é importante relembrar. Nenhum militar foi punido.

Outro episódio nebuloso aconteceu em 1994 durante a Operação Rio, no qual um rapaz foi fuzilado pelo Exército em 6 de dezembro, segundo relatório da Human Rights Watch. Embora familiares neguem que Alex Alexandre Teles Pacheco estivesse armado, os soldados jamais foram investigados. Quatro anos depois, em junho de 2008, três jovens (Wellington Gonzaga Ferreira, David Wilson da Silva, Marcos Paulo Campos) foram detidos por membros do Exército, espancados, e entregues para os traficantes inimigos no caso que ficou conhecido como “Morro da Providência”. Depois de dezenas de ações protelatórias por parte da defesa, o tenente que comandou a ação ainda não foi a julgamento; os demais foram absolvidos. Em 2020, a Justiça Federal decidiu que o processo deveria passar para a Justiça Militar. Mas o caso ainda não chegou por lá.

A história se repete. A partir de 2011, como documentei no meu livro Dano Colateral (ed. Objetiva) e na série de reportagens para a Pública, foram pelo menos 35 mortos e nenhuma punição. Então, embora a justiça chegue tarde, e a defesa dos soldados tenha já dito que vai recorrer – não há nenhuma garantia que o Superior Tribunal Militar, composto de 10 ministros provenientes das Forças Armadas e 5 civis, manterá a sentença – a decisão estabelece um precedente de controle das Forças Armadas pela sociedade em um momento em que tantos abusos por parte de militares têm ocorrido à larga, à vista de todos.

Durante todos os anos em que eu cobri o caso de Evaldo (a Pública revelou que a operação que levou a morte foi ilegal) nada me impressionou mais do que a integridade da viúva Luciana Nogueira, que desde a morte do marido manteve uma visão clara sobre o papel reparador que só a justiça, com maiúscula e com minúscula, poderia lhe trazer. Luciana lutou para que a sociedade reconhecesse que seu marido não era criminoso, e que criminosos na verdade eram aqueles que o mataram. “Se viesse alguma coisa que distorcesse a imagem dele, eu não iria me perdoar”, ela me disse uma vez.

Também na semana passada, o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou dois policiais civis suspeitos de envolvimento no homicídio durante chacina do Jacarezinho em maio deste ano.

Por isso, leitor, enquanto se aproxima o fim de semana e não se vislumbra nenhum fim para o pesadelo que é esse governo – e o relatório da CPI não vai mudar muita coisa – vale lembrar que o Brasil não é só isso. Que ainda temos milhões de pessoas que não perderam o senso de justiça. E que há avanços mesmo em tempos de retrocesso.   

 

De: Agência Pública <contato@apublica.org>

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