A vitória do grupo fundamentalista Talibã no Afeganistão virou pretexto para parlamentares bolsonaristas tentarem acelerar a aprovação de um projeto que prevê adoção de ações “contraterroristas”. O texto, que tramita na Câmara há cinco anos, é de autoria do presidente Jair Bolsonaro, de quando ainda era deputado federal, e, na semana passada, recebeu críticas de representantes da própria Polícia Federal e da Organização das Nações Unidas (ONU), que se referiu ao projeto como “uma espécie de licença para matar”. Embora o Brasil jamais tenha sido alvo de ações de grande porte reivindicadas por grupos terroristas internacionais, o relator da proposta, deputado Sanderson (PSL-RS), diz que o país precisa estar “alerta”.
O projeto tem 32 artigos e prevê a formação dos agentes públicos contra o terrorismo, incluindo militares das Forças Armadas, das polícias e membros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin); autoriza uso de identidade falsa nessas operações; permite infiltração dos agentes em movimentos; e centraliza essas ações na “Autoridade Nacional Contraterrorista”, que vem a ser o presidente da República. Para especialistas, o texto traz formulações vagas que podem gerar riscos aos direitos humanos e a movimentos sociais.
Para o representante do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos na América do Sul, Jan Jarab, a proposta atinge movimentos sociais ao dizer que as medidas seriam aplicadas inclusive em ato “não tipificado como terrorismo”, mas que seja perigoso para a vida humana. Jarab criticou ainda a autorização para disparos em alguns casos.
— É uma formulação muito ampla, muito vaga e sem critérios claros e que facilmente podem ser utilizados contra os movimentos sociais. E reduzir sanções para agentes em legítima defesa, cumprimento do dever ou estado de necessidade, somadas à amplitude do conceito de terrorismo, é considerar uma espécie de licença para matar — disse Jarab, durante audiência pública na última quinta-feira, na comissão especial que trata do projeto na Câmara.
O texto do então deputado Bolsonaro também cria a Medalha do Mérito Contraterrorista, em quatro modalides: “Militum”, para Forças Armadas; “Securitatem”, para integrantes de órgão de segurança pública); “Intelligentia”, para agentes de inteligência; e “Peregrinus”, para agentes estrangeiros que ajudaram o Brasil nessas ações.
O projeto foi apresentado por Bolsonaro em 2016 e elaborado junto com o então consultor legislativo Vitor Hugo, que se elegeu deputado federal (PSL-GO) em 2018 e chegou a ser líder do governo no Congresso. O parlamentar desengavetou o projeto em 2019.
— Não podemos ficar expostos. No Afeganistão, o Talibã tomou o poder com a saída desastrosa do (presidente dos Estados Unidos, Joe) Biden. O Brasil pode, sim, ser alvo de ataques terroristas — alega Vitor Hugo.
Responsável pela coordenação de combate ao terrorismo na Polícia Federal, o delegado José Fernando Chuy apresenta uma série de restrições ao projeto, a começar pelo uso da expressão “contraterroristas” — o mais correto, diz ele, seria chamar de “ações para enfrentamento ao terrorismo”. Chuy também não concorda com a figura da Autoridade Nacional Contraterrorista, por dar “amplas prerrogativas de repressão e prevenção que conflitam com as atribuições” de outros órgãos, e diz que seria preferível criar uma comissão com esses representantes.
O delegado, assim como Jarab, defende ainda a supressão do trecho que pune ato que “seja perigoso a vida humana”, mesmo sem ser tipificado como terrorismo.
— Não parece muito bem colocado e traz o risco da violação do princípio do Direito Penal de que não há crime sem conduta — afirmou.
O relator Sanderson, que espera levar o projeto à votação até outubro, compara a situação do Brasil com os Estados Unidos em 2001 e diz que “até o 11 de setembro, ninguém imaginava um ataque terrorista daquelas proporções”, referindo-se ao atentado às Torres Gêmeas, em Nova York. O Talibã foi responsabilizado pelo ataque, o que levou à invasão do Afeganistão por tropas americanas. Com a retirada das tropas, no último mês, após duas décadas, o grupo fundamentalista islâmico reassumiu o poder.
No caso do Brasil, segundo o parlamentar, seria preciso distinguir, por exemplo, em ações de grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), aquelas que são “crimes comuns” e outras que configurariam, em seu entendimento, atos terroristas. Ele nega que o projeto conceda “licença para matar”, mas afirmou que vai corrigir trechos do projeto que deixem ambíguo o conceito de terrorismo.
— Não cabe o argumento de que aqui nunca sofremos esse tipo de ameaça — argumenta Sanderson.
Fonte: O globo
Mín. 22° Máx. 27°