A confusão provocada naquele Natal, no entanto, o levou a tomar uma decisão que mudou a vida dele e de todos em volta — decidiu experimentar um tratamento que havia visto em um site americano, onde as pessoas compartilhavam sua experiência com o vício em jogos eletrônicos. O bom resultado o fez trazer para o Brasil a experiência, com interações em português. Detalhe: o anonimato é obrigatório nesse tipo de terapia.
— Quando descobri o CGAA, comecei a dividirtudo o que estava me incomodando e percebi que outras pessoas tinham uma história de vida muito parecida com a minha — relata A.B.P.
Ele afirma que passou a participar diariamente das reuniões em inglês e falar sempre que podia. Nas conversas, os membros trocam dicas de como parar ou reduzir a frequência dos jogos, assim como manejar a ansiedade provocada pela abstinência e a controlar os gatilhos que geram a ânsia pelo jogo.
— Primeiro fiquei sem jogar por quatro meses, mas por conta da pandemia e da necessidade de ficar dentro de casa, me desmotivei e acabei tendo uma recaída. Fiquei entre idas e vindas. Mas agora faz oito meses que estou sem jogar, estou bem mais tranquilo e conseguindo lidar com as coisas de maneira muito melhor, controlar meu tempo e minhas emoções — comemora.
Qualquer semelhança com o estilo da AA, os Alcoólicos Anônimos, não é mera coincidência. Com o nome de Computer Gaming Addicts Anonymous (CGAA) — Adictos em Jogos Eletrônicos Anônimos —, a terapia contempla duas reuniões semanais que, por enquanto, ocorrem por Zoom. A expectativa é que até o final do ano ocorra a primeira reunião presencial, no começando pelo Rio de Janeiro. Um braço recém-criado pelo CGAA no Brasil é uma segunda organização, só com os familiares de pessoas com dependência em jogos eletrônicos para compartilharem seus dramas.
Esse formato de tratamento começou a ser desenhado em 2004, quando um grupo de jogadores eletrônicos americanos começou a compartilhar em um fórum online os prejuízos que os jogos estavam causando em suas vidas. Durante dez anos eles foram se organizando e percebendo que a ajuda mútua fazia bem para os membros. Em 2014, decidiram que adaptariam os 12 passos dos Alcoólicos Anônimos, que têm como base primordial reconhecer a impotência diante do vício e observar os prejuízos causado por ele. Hoje o grupo conta com centenas de pessoas de várias partes do mundo, com reuniões online acontecendo em inglês, espanhol, alemão e russo e, agora em português. Por enquanto os encontros presenciais estão limitados a algumas cidades americanas.
A psicóloga Elizabeth Carneiro, que estuda o Perfil de Jogador Patológico Brasileiro na Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp e é diretora da Clínica Espaço Clif, considera que os grupos de ajuda mútua são uma boa alternativa para quem se percebe dependente dos jogos, assim como para a família ao redor.
— Estes grupos mostram que as pessoas que sofrem de algum tipo de dependência não estão sozinhas, não são as únicas. E as reuniões voltadas para as famílias conseguem ainda orientar os parentes sobre quais tipos de comportamento são normais e quais são patológicos — explica.
Chamada de gaming disorder, a dependência de jogos de eletrônicos é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. A condição entrou o CID 11 (11ª edição da Classificação Internacional de Doenças, que padroniza a caracterização e notificação de doenças em todo o mundo) em 2018 e será formalizada a partir de 1º de janeiro de 2022.
Nem sempre o tempo em si dispendido em frente ao computador ou celular é sinalizador de se tratar de um vício. O problema se estabelece quando o hábito atropela compromissos importantes e a convivência com amigos próximos. Ou então, quando o interfere em questões de saúde, como o sono, as refeições e a higiene pessoal.
O problema é definido como um padrão de comportamento caracterizado pela perda de controle sobre o tempo de jogo, sobre a prioridade dada aos jogos em detrimento de outras atividades importantes e continuação ou aumento do tempo de jogo apesar das consequências negativas associadas a ele. O diagnóstico é dado quando os prejuízos afetam de forma significativa as áreas pessoais, familiares, sociais, educacionais, ocupacionais ou outras áreas importantes ao longo de cerca de 12 meses.
O número de pessoas que jogam games eletrônicos estimado pela Entertainment Software Association, associação comercial da indústria de videogames nos Estados Unidos, é gigante: cerca de 2,6 bilhões em todo mundo. Estudo feito pela Associação Americana de Psiquiatria mostra cerca de 1% da população mundial sofre com vício em jogos eletrônicos. O número de dependentes é enorme, portanto: aproximadamente 80 milhões. Não há estimativa oficial no Brasil, mas sabe-se que o número é alto. A incidência maior é nos países asiáticos.
O perfil de quem sofre de dependência em jogos eletrônicos costuma ser de pessoas do sexo masculino e de classe média (por ter acesso a aparelhos eletrônicos). Normalmente, o interesse pelos games começa na adolescência. Pessoas que apresentam quadros de depressão e baixa autoestima, que tenham uma visão diminuída em relação a si mesmos, estão mais vulneráveis à dependência, já que enquanto jogam eles se sentem bons em alguma coisa.
— Os jogos são capazes de ativar em nosso cérebro mecanismos de recompensa muito rápidos. Por exemplo, eles costumam ter fases. À medida que você consegue ter um brilhantismo em uma etapa e você a conclui, é como se o jogo dissesse que você é incrível, que você é campeão — afirma Carneiro.
Fonte: O Globo
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