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O livro secreto da ditadura que influencia militares até hoje

O livro secreto da ditadura que influencia militares até hoje

08/09/2021 às 19h31 Atualizada em 08/09/2021 às 22h31
Por: Redação
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Foto: Reprodução
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Em quem você pensa quando ouve a expressão “marxismo cultural”? Provavelmente, em Olavo de Carvalho, certo? Considerado o guru intelectual do bolsonarismo, Olavo é a figura que melhor representa aquilo que alguns analistas insistem em caracterizar como “ala ideológica” do governo de Jair Bolsonaro. Definido em oposição às alas “técnica” e “militar”, esse grupo seria integrado pelas hostes mais radicais dos apoiadores do presidente.

Acontece que, ainda nos primeiros anos do regime democrático, muito antes do astrólogo aparecer no debate público defendendo a existência do tal “marxismo cultural”, esta mesma tese era difundida em relatórios do Centro de Informações do Exército (CIE), a agência de inteligência da instituição à época. Em outras palavras: a “ala ideológica” reproduz hoje um conjunto de ideias que já circulam pelo menos desde os anos 1980 entre os militares.

É o que mostramos na reportagem “Os ecos do Orvil em 2021, o livro secreto da ditadura”, publicada na segunda-feira, 30 de agosto.

A investigação partiu de Relatórios Periódicos Mensais (RPMs) produzidos pelo CIE entre 1989 e 1991. Os RPMs eram informes amplamente difundidos entre os oficiais da força, e tinham o objetivo de compilar as informações mais importantes ocorridas no mês em cada área de interesse dos militares. São documentos que estou analisando em minha tese de doutorado no IESP/UERJ, na qual procuro compreender as disputas políticas entre os militares e os movimentos sociais de vítimas da ditadura na construção dos discursos sobre a violência praticada pelo regime militar. Embora estejam disponíveis publicamente no Arquivo Nacional, junto à documentação do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), parte dos documentos era inédita. No site da Pública, disponibilizamos os arquivos na íntegra para download.

As agências de inteligência produziram seus informes mensais ao longo de toda a ditadura, mas, a partir de fevereiro de 1989, eles ganharam nova roupagem. Mudaram a diagramação, a linguagem utilizada, e os relatórios passaram a alcançar mais pessoas dentro das tropas. Tratava-se de um esforço do então chefe do CIE, o general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho, para preparar o Exército para as mudanças políticas que o Brasil vivenciava naqueles anos.

Grande parte da sociedade viveu o período da Constituinte e os primeiros momentos do novo regime como um tempo de esperanças. Para o Exército, contudo, as expectativas eram as piores possíveis. A Nova República foi caracterizada como um “regime de permissividade política e social sem precedentes” em um texto assinado por Avellar Coutinho no RPM de dezembro de 1989. Para ele, o grande risco que a nova ordem política trazia era a possibilidade de uma “nova tentativa de tomada de poder” por parte das esquerdas.

Depois de ler este trecho, percebi que os novos RPMs não traziam apenas mudanças formais. O conteúdo era informado por uma ideia que havia se consolidado poucos anos antes, em um relatório secreto desenvolvido pelo CIE entre 1985 e 1988: o Orvil – a palavra “livro” ao contrário. Composto de quase mil páginas, o Orvil teve sua existência revelada em 2007 pelo jornalista Lucas Figueiredo. Grande parte do texto reafirma as versões fantasiosas dadas pela ditadura para os crimes cometidos por seus agentes.

Mas o Orvil trazia também uma novidade na leitura que os militares faziam da então nova realidade nacional. Era a ideia de que, após três tentativas de tomar o poder pela via militar – em 1935, na chamada Intentona Comunista; em 1964, com João Goulart; e na virada dos anos 1960, com as guerrilhas urbana e rural –, a esquerda teria decidido mudar o campo de batalha. O novo palco de operações seria a arena das memórias, da História e da hegemonia cultural. Estava ali, portanto, a base para a ideia do “marxismo cultural”.

A descoberta de que o Orvil alimentou informes oficiais do Exército que circularam entre todas as patentes supre uma lacuna importante nos nossos conhecimentos sobre a memória positiva que os militares têm da ditadura. Antes, imaginava-se que o conhecimento sobre o livro secreto teria ficado restrito entre um pequeno grupo de militares da reserva que haviam participado da estrutura repressiva e da própria escrita do texto. A reportagem demonstra que não: as ideias do Orvil, marcadamente autoritárias, foram disseminadas para dentro do Exército já durante o regime democrático.

Trata-se de mais um indício de como as Forças Armadas não se adequaram à democracia. Para investigar se essa perspectiva continuou sendo a base intelectual da inteligência militar, nós solicitamos, via Lei de Acesso à Informação, os outros RPMs dos anos 1990. Mas o Exército afirmou que a documentação foi destruída.

A despeito da dificuldade de se obter documentos produzidos pelas Forças Armadas, os especialistas consultados para a reportagem foram unânimes em apontar que houve pouca mudança ao longo dos trinta anos de Nova República. Os resultados da ausência de reformas institucionais estão evidentes hoje, quando mais uma vez o país se vê sob a ameaça das fardas que não aceitam se submeter ao poder civil.

Lucas Pedretti é historiador, doutorando em sociologia (IESP/UERJ) e colaborador da Agência Pública

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