Marinheiros, detentos, trabalhadores e prostitutas estiveram entre os primeiros brasileiros a ostentar desenhos na pele. Silvana Jeha, autora do livro ‘Uma História da Tatuagem no Brasil’, explica à BBC News Brasil como eles eram vistos no passado.
Corria o ano de 1976. Em plena madrugada, dois jovens cariocas perambulavam pela zona portuária de Santos, no litoral paulista. Ainda sob efeito dos drinques consumidos nos bares da região, decidiram atravessar a porta da loja de tatuagens. O dono, sujeito forte e calvo, de cabelos louros e pele bem clara, puxou conversa.
Chamava-se Knud Gregersen e era dinamarquês. Na pele de um daqueles rapazes, traçou um sol estilizado. Diversas solicitações interromperam o serviço: uma prostituta erguia a saia, exigindo que lhe fizesse um coração no traseiro; próximos à entrada, marujos filipinos iam se aglomerando em filas.
Gregersen se exasperou. Temia passar o resto da noite desenhando baleias. O mamífero aquático, afinal de contas, era mascote do Santos Futebol Clube, time que revelou Pelé. De tempos em tempos, marinheiros das mais variadas nacionalidades davam as caras no estabelecimento, decididos a homenagear o jogador. Daquela vez, resmungou Gregersen, não seria diferente. Ele contava quase cinco décadas de vida e sabia do que estava falando.
Com o pai, aprendera o básico do ofício. Terminada a Segunda Guerra, mudou-se para Hamburgo e teve aulas com Christian Warlich, um dos mais importantes tatuadores da Alemanha. Depois, na companhia de um cachorro, deu a volta ao mundo. Tatuou na Austrália e boa parte da Europa Ocidental. Atendeu marujos nas Ilhas Canárias e trabalhou em feiras do continente africano. Contornou a Argentina, o Uruguai, e acabou se apaixonando pelo Brasil.
Em 1959, desembarcou no porto de Santos e logo abriu um ateliê. Trazia consigo um artefato até então desconhecido por aqui — uma máquina elétrica, própria para tatuagens.
Tornava-se assim o primeiro (e, por muito tempo, o único) tatuador a possuir um estabelecimento do gênero no país. Sob o pseudônimo de Lucky Tattoo, angariou fama nacional nos anos 1960. Quando morreu, vitimado por um ataque cardíaco em 1983, já havia se convertido em figura de culto entre adeptos das artes corporais. Hoje, seu nome desponta como elo fundamental entre o passado e o presente da tatuagem brasileira.
“A tatuagem se desenvolvia em lugares de confinamento, como navios, quartéis e prisões”, explica Silvana Jeha, doutora em História Social pela PUC-Rio. “Por outro lado, ela também aparecia na praça pública, na rua, no bar. Não existiam estúdios de tatuagem. Até então, o tatuador era um cara qualquer, que desenhava ali na esquina.”
O repertório iconográfico pouco diferia do atual. Há cem anos, a pele dos tatuados já ostentava âncoras, animais, mulheres nuas, símbolos políticos ou religiosos, personagens de histórias em quadrinhos, nomes e iniciais de pessoas queridas. Os traços, porém, evidenciavam certo amadorismo, ligado a uma prática quase ritualística, infinitamente mais bruta e perigosa que os procedimentos de hoje em dia.
Agulhas, espinhos e cacos de vidro eram alguns dos apetrechos utilizados na feitura dos desenhos. Cinzas de cigarro, graxa de sapato, carvão vegetal, fuligem e nanquim compunham fórmulas de pigmentos improvisados. Aos arrependidos, sobravam métodos de remoção igualmente dolorosos, baseados em queimaduras de ácido ou de castanha de caju.
“A tatuagem era uma prática horizontalizada e sofreu enorme discriminação. Perdemos o fio dessa meada e só retomamos muito tempo depois, via cultura pop”, afirma Jeha, que pesquisou o tema por mais de cinco anos.
No livro “Uma História da Tatuagem no Brasil”, publicado no final de 2019 pela editora Veneta, a historiadora compartilha suas descobertas e analisa as transformações sofridas por essa arte entre a primeira metade do século 19, período em que se firma como cultura popular urbana, e meados da década de 1970, quando cai no gosto da classe média.
Imaginário – “O livro é filho do meu doutorado”, diz. A tese que defendeu em 2011 versa sobre a Marinha Imperial brasileira e as contribuições de seus recrutas para o desenvolvimento de uma cultura cosmopolita no país. “Eu entrei nessa onda do marinheiro ser um tipo meio extraordinário e mítico”, afirma.
Um livro de registros da fragata de guerra Imperatriz, contendo informações sobre 900 marujos, ganhou espaço na tese. Trata-se do documento mais antigo que a autora já encontrou acerca da presença de tatuados no Brasil.
Os tripulantes que embarcaram no navio entre 1833 e 1835 foram catalogados em função de seus atributos físicos — altura, cor dos olhos e da pele, cicatrizes, formato da cabeça e, vez ou outra, desenhos descritos como “marcas” ou “sinais”. A palavra “tatuagem” surgiria apenas algumas décadas depois.
Mickey Mouse, icônico personagem de Walt Disney, tatuado nos braços de um marinheiro paulista na década de 1930 — Foto: Divulgação – Editora Veneta
Fonte: G1 – Pop & Arte